A
caminhonete que um dia foi vermelha, toda amassada e fazendo um
estrondo de trovão sobe a estradinha. As crianças escutam lá do
quintal. Dava a impressão que todos no bairro escutaram, tamanha
barulheira fazia aquela geringonça.
O
menino de cabelo raspado com exceção de uma franja, corre abrir o
portão.
Seu
Jacinto entra arranhando a primeira marcha e uma fumaça preta sai do
cano de escape. Empoleirado no muro o guri grita e ri daquilo tudo.
Um
homem grande, com a cara cor de rosa, usando uma blusa um tanto
florida e amarrotada, dá uns socos na porta, sai e fica em meio à
fumaça e ao pó da estradinha. Tira um lenço muito sujo do bolso
fundo da calça larga e passa na testa suada.
-
Ei piá. Cadê sua mãe? Avise que eu trouxe os bichos.
Ouve-se
então uma enorme reclamação da carroceria do veículo. O som era
alto e parecia uma briga feroz.
O
motorista tira uma barra de ferro do banco da caminhonete e bate na
lateral, fazendo um barulho maior que o som que vinha de dentro. Os
bichos acalmam-se por alguns instantes.
O
menino, completamente assustado, sai em disparada para os fundos da
casa. Encontra a jovem mãe, pois ela já havia escutado o barulho e
tratou de desligar o fogão para não queimar o almoço antes de sair
de dentro da casa.
-
O seu Jacinto chegou, mas tem uns “bichos que estão gritando” no
caminhãozinho!
A
mãe ri e acompanha o filho ao mesmo tempo em que chama as filhas que
estão nos fundos para irem receber os “bichos que estão
gritando”.
A
avó que mora na casa ao lado também vem para a recepção dos
seres. Afinal aquele dia parecia ser um tremendo dia especial!
A
menina de cabelos claros, com grandes olhos verdes, usando calça
brim coringa e uma camiseta muito grande para o seu tamanho, desce a
rampa da entrada da casa arrastando a irmãzinha chorona pela mão
melequenta. A pequena só parou de chorar quando chegou perto do
barulho que vinha da carroceria da caminhonete.
-
Chegou cedo seu Jacinto. Pode descarregar. Vou abrir o portão do
galinheiro.
Como
assim?
Em
volta do portão já estava uma pequena multidão de vizinhos
curiosos. Todos se apertando no muro para ver o que tinha na
caminhonete que fazia aquela algazarra.
Como
abrir o portão do galinheiro?
As
três crianças ficaram grudadas com a avó que olha curiosa. Elas
não estavam entendendo.
Por
que precisa abrir o portão para colocar galinhas no galinheiro? É
só jogar por cima da cerca, oras! Ou não?
Seu
Jacinto trava uma batalha com a barriga para subir na carroceria. O
rosto fica vermelho desta vez e o lenço sujo vai enxugar o suor até
da nuca cheia de dobrinhas. Ele arrasta uma lona escura e cheia de
buracos para o lado deixando à mostra umas caixas enormes de tela e
apavora uns seres negros cheios de penas.
Da
multidão em volta ouve-se:
-
Nossa! Que lindos! Que enormes! São perus.
Claro
que são perus. Qualquer um reconheceria um peru. Imponente,
majestoso, senhor de si, negro e brilhante, com as penas compridas e
com a cabeça e barbela que vão do azul ao vermelho e até roxo.
Por
que peru na casa da dona Cice? Não. Por que tantos
perus na casa da dona Cice?
É,
logo o seu Jacinto começou a tirar um, dois, cinco, enormes perus
negros daquelas caixas; amarrava os pés deles e dava para o ajudante
sujismundo. Este moço malcheiroso saía correndo com a ave nos
braços e os dois gritavam. Parecia concurso de quem gritava mais
alto.
No
portão do galinheiro ele desamarrava os pés do coitado e soltava no
terreiro. Fez isso cinco vezes e em todas, ele gritou mais que os
perus. No final as pessoas que estavam no portão bateram palmas para
o desempenho do rapaz sujo.
Dona
Cice, a avó e as três crianças estavam admirando os enormes perus
no terreiro do galinheiro. As 10 galinhas estavam tão assustadas
quanto as crianças, não pelos perus. Galinha não tem medo de peru.
Elas estavam assustadas pelo maluco do rapaz sujo que tanto gritava e
pela falta do galo, pois a dona Cice deixou o enorme galo vermelho e
amarelo preso no galinheiro. Elas precisavam da presença do galo.
O
galo não se conformava de estar preso enquanto as galinhas estavam
ali fora, à mercê dos intrusos intrometidos.
A
avó explicava para as crianças o que estava acontecendo com os
grupos familiares das galinhas e dos perus.
Finalmente
a mãe abriu a portinhola e o galo foi solto.
O
menino saiu em defesa do galo:
-
Mãe, esses baitas perus vão matar nosso galo. Olha o tamanho deles!
O Sargento é grande, mas os perus são bem maiores.
A
avó interveio para sossegar o pequeno Mig:
-
Não se preocupe. Você já vai ver o que o Sargento consegue fazer.
E
dito e feito. Assim que o galo sai pela pequena porta, vai com tudo
em cima dos perus. Briga com todos os cinco. Põe ordem na casa e
mostra quem manda naquele terreiro.
As
crianças ficam tristes em ver a briga. Não querem que nenhum deles
saia machucado. A avó joga milho em um lado e todos esquecem as
desavenças e vão fazer um lanche. Ela explica que apesar do
tamanho, peru não briga com galo porque perde.
Ninguém
perguntou o porquê de todos aqueles perus no galinheiro. Afinal, na
cabeça de criança:
“Nosso
galinheiro, nossas galinhas, nossos perus”. Pronto simples assim.
Os
dias passaram e a pequena família viveu em função das enormes aves
barulhentas. Muita comida, restos de comida, milho debulhado dos
sabugos pelos dedinhos delicados das meninas; verduras, legumes e
frutas colhidos da horta e cortados em pedaços pequenos pelas mãos
ágeis da mãe e da avó.
E
o irmão? Fazia o quê?
Mig
colocava água no coxo. E não deixava de atormentar os coitados dos
perus só para ver as barbelas ficarem infladas e as penas eriçadas.
Coisas de piá mesmo!
O
dia 24 de dezembro estava chegando. As crianças ouviram a mãe
conversando com as senhoras da Igreja e combinando serviços, pratos,
roupas. Os três filhos ensaiavam com o coral para uma apresentação
que seria na Festa de Natal. Estavam ansiosos, mal podiam esperar
pelo dia.
No
salão da Igreja longas mesas foram montadas. Uma enorme árvore de
Natal ficou bem no meio e todos os sábados e domingos as crianças e
jovens faziam os enfeites de papel e purpurina. Na última semana ela
estava pronta, com os pisca-piscas, as bolas e aqueles chumaços de
algodão.
Ficou
a coisa mais linda do mundo! Palavras das próprias crianças
escritas no mural.
E
o jantar?
Todas
as mães, tias, avós estavam fazendo algum prato doce ou salgado.
Aquele dia 23 amanheceu diferente de todos. Era uma sexta feira no
começo da tarde e as pessoas estavam chegando na casa da dona Cice.
As crianças estavam tomando o café da tarde e ficaram contentes com
a vinda das senhoras da igreja, alguns maridos e os filhos.
Estranho.
Estranho, mas divertido.
Começou
uma arrumação esquisita nos fundos da casa. Os homens fizeram uma
espécie de churrasqueira de tijolos com lenha e acenderam o fogo.
Tinha um enorme tacho também. Montaram uma mesa comprida de madeira.
E tinha facas, pratos, travessas, temperos, comida, milho, ovo.
Nossa! Muita coisa.
Enquanto
as mulheres arrumavam essa cozinha “de fora”, os dois homens
foram até o galinheiro com uma garrafa de pinga.
Garrafa
de pinga?
Ninguém
bebe nesta casa, nem as visitas, são todos mórmons! As crianças
ficaram olhando es-pan-ta-das.
O
Mig já pensou em delatar o ocorrido ao bispo da igreja.
Todos
vão empoleirar-se na cerca para ver a atuação dos homens dentro do
terreiro do galinheiro, pois os cinco perus exaltaram-se quando eles
abriram o portão.
O
que eles vão fazer com a pinga?
Os
homens cobriram o cocho de água e deixaram apenas uma bacia com
pinga para os perus beberem. As galinhas refugiaram-se dentro do
galinheiro e ficaram bem quietinhas lá. Dona Cice aproveitou e
fechou a portinhola, impedindo que elas viessem para fora.
Os
perus correm de um lado para outro, nervosos e agitados. Nenhum deles
quer tomar a pinga.
O
menino comenta:
-
Eles também não bebem nada que tenha álcool. Troca por um suco!
A
risada foi geral. Mas a vovó foi esclarecer que os perus tinham
que tomar a pinga.
E
foi quase uma hora de espera e nada dos danados tomarem um só gole.
Os
homens decidem então que seria na marra. Entram de novo no terreiro
e encurralam o primeiro peru. Um segura e o outro faz o coitado tomar
a pinga por um potinho. Tomou tudo! Todos tomaram.
Aí
foi a espera.
Aproveitando
a luz do dia, foram colher uns pêssegos no quintal e sentaram na
escada da entrada para comer as frutas doces e amarelinhas esperando
que os perus começassem a “trançar as pernas”.
-
Por que tem que esperar os perus ficarem bêbados? – Perguntou o
menino de franja única.
-
Para que não vejam o amigo sendo degolado. – Diz o filho de um dos
homens que embebedou a perusada, e faz um som e um sinal de degola
assustador com a mão. - Shhhhhhhimmmm!
-
Ei, pode parar com isso Zéca. Pare de assustar o Mig. Não é nada
disso. É para a carne ficar mais macia. Só isso.
-
Mas, vocês vão matar os nossos perus? Todos eles? Por quê?
-
Ué? Você não sabia? Mas é um bocó mesmo. Por que você acha que
eles estão aqui na sua casa? Eles são os perus do Natal da Igreja!
Amanhã nós vamos papar todos eles na Ceia de Natal. A minha mãe
está fazendo recheio com milho e ervilha que eu adoro.
Neyd Montingelli
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